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Por Jorge Arbache
O alto e continuado crescimento econômico da China nos últimos 40 anos não apenas colocou o país na posição de segunda maior economia no mundo, mas reduziu substancialmente a pobreza, fomentou a criação de uma enorme classe média e tornou o seu sistema produtivo e logístico um exemplo internacional. O país respondeu por parcela expressiva do crescimento econômico global daquele período e várias empresas chinesas atingiram a condição de estarem nas listas das mais representativas de seus respectivos setores. Há amplo reconhecimento de que o centro de gravidade da economia mundial estaria se movendo para a Ásia, tendência que parece cada vez mais inevitável.
Após período de crescimento espetacular, a China está, agora, se defrontando com uma nova etapa da sua jornada rumo ao desenvolvimento, em que o crescimento será estruturalmente menor em razão do perfil demográfico e do atingimento de um patamar relativamente já elevado de modernização. Ademais, a geopolítica está afetando e até determinando mercados, comércio e investimentos, com consequências especialmente importantes para a China – por exemplo, as políticas de reshoring, friendshoring e nearshoring. 2 Para seguir crescendo, o país terá que passar por reformas.
De fato, a China terá que explorar fronteiras de negócios que gerem novos espaços para investimentos e que fomentem um novo padrão de integração à economia global. Um caminho evidente é a economia da sustentabilidade, que será o epicentro da agenda econômica global nas próximas décadas. Na verdade, a China já está ingressando nesta área ancorada por políticas bem definidas e metas ambiciosas. O país, que é hoje o maior emissor de carbono, visa converter-se em carbono-neutro até 2060, tarefa para lá de ousada, considerando o perfil da matriz energética amplamente dominada pela energia fóssil e pelo perfil da produção, amplamente dominado por plantas geradoras de poluentes e contaminantes.
Essa conversão requer extraordinários investimentos em energias renováveis, eficiência energética, reciclagem e tantas outras áreas, bem como a conversão de plantas e cadeias de valor para padrões sustentáveis. O país já ocupa lugar proeminente na produção de painéis solares, equipamentos eólicos, hidrolisadores, mobilidade elétrica e outros setores da nova fronteira. Todavia, para garantir a condição de liderança, a China terá que enfrentar grande e crescente competição internacional e pressões regulatórias na área ambiental. Mas, sobretudo, terá que esverdear as suas cadeias de produção o mais rápido possível.
Embora os esforços da China já estejam sendo notados, a jornada ainda será longa e cheia de obstáculos. Para avançar, o país terá que lançar mão de um amplo arsenal de instrumentos, e um deles será trabalhar com alianças. Pelos seus já estreitos vínculos econômicos com a China e pelas suas condições únicas associadas às vantagens comparativas e competitivas na área da sustentabilidade, o Brasil poderá contribuir decisivamente para a transformação pela qual passa o gigante asiático.
Geograficamente distante, é preciso reconhecer que o Brasil não está na linha de frente para se beneficiar mais diretamente da China por meio de cadeias regionais de valor. Embora haja amplo reconhecimento de que a atual complementariedade das duas economias seja positiva, na qual o Brasil fornece commodities para a China e adquire bens e serviços de alto valor adicionado, é preciso também reconhecer a necessidade de se fomentar caminhos que ampliem e sofistiquem o relacionamento e o levem para um novo patamar. A mudança climática oferece oportunidades únicas para a relação econômica bilateral e elas são promissoras e vantajosas para ambos.
Como a China poderá se beneficiar das condições brasileiras para acelerar e escalar o seu processo de conversão para uma economia de baixo carbono, e como o Brasil poderá se beneficiar do crescimento verde chinês? O powershoring, estratégia empresarial que poderá ser a espinha dorsal de uma nova agenda de consensos e interesses mútuos, pode ser um dos caminhos.
O POWERSHORING E A DESCARBONIZAÇÃO
O powershoring é uma estratégia de localização de plantas industriais que combina elementos de resiliência com a moderna agenda de eficiência. Trata-se da atração de investimento direto estrangeiro (IDE) para países que dispõem de energia verde, segura, barata e abundante para apoiar plantas industriais intensivas em consumo de energia e que estão sob pressão de custos e de compliance ambiental que comprometem a competitividade e até a viabilidade comercial. O powershoring é especialmente relevante para plantas de setores como aço, química, fertilizantes, vidro, metal-mecânica, papel e celulose, cerâmica e tantas outras que são grandes consumidoras de energia.
O Brasil tem, de longe, a matriz elétrica mais verde do G20, resultado de vantagens comparativas ambientais, grandes esforços prévios de investimentos em energias renováveis e do desenvolvimento de tecnologias, modelos de negócio e cadeias de valor de biocombustíveis e outras tecnologias sustentáveis. Em razão dessa condição e de estar desenvolvendo uma ambiciosa carteira de novos projetos de energias limpas e de hidrogênio verde (H2V), o Brasil desponta como um dos grandes destinos da estratégia do powershoring. Além disso, o Brasil tem localização geográfica privilegiada, está distante de temas geopolíticos e tem governantes conscientes da relevância estratégica da agenda ambiental para o desenvolvimento econômico e social do país.
Outros fatores se somam para destacar essa atratividade. O Brasil já conta com um ecossistema relativamente avançado de apoio a plantas industriais, tem sistemas financeiro e de mercado de capitais relativamente sofisticados, conta com importantes cadeias de produção industrial e de serviços de apoio à produção e à gestão, além de centros de pesquisa e universidades com larga experiência industrial e tecnológica e centros avançados de capacitação de mão de obra. O país também sedia muitas centenas de empresas multinacionais, incluindo cerca de 300 importantes empresas chinesas, é um dos principais destinos globais do IDE e é sede regional de várias grandes empresas. Ademais, é privilegiado na disponibilidade de água, biodiversidade, florestas e importantes minerais críticos para a descarbonização, como níquel, lítio, silício, terras raras, grafite e minério de ferro de alto teor.
O powershoring é, portanto, uma estratégia em que a energia limpa, os investimentos verdes, as vantagens comparativas, o compliance ambiental, o capital estrangeiro, a exportação, a tecnologia e a inovação exercem papel determinante. Ao mesmo tempo, ele combina o respeito e a proteção ao meio ambiente com a agenda do desenvolvimento econômico e social. Tudo isso pode ser decisivo para a geração de emprego e renda e para o desenvolvimento regional, temas fundamentais para fortalecer o combate à pobreza e à desigualdade no Brasil.
O powershoring pode beneficiar a todas as partes envolvidas: as empresas, que passam a ter acesso à energia verde, segura e barata e que estarão mais protegidas de temas de compliance ambiental, com fortalecimento da resiliência produtiva; o país emissor ou de origem da empresa, que se libera de fornecer energia cinza a empresas com alto consumo de energia, viabilizando uma transição energética mais rápida e mais barata; e o meio ambiente, que se beneficia da mais rápida transição energética e do aumento da fabricação de produtos verdes.
O Brasil já dispõe do núcleo básico de infraestrutura necessária para o powershoring, que é a combinação porto-área industrial-energia renovável. Exemplos incluem o Porto do Pecém, o Porto do Açu e o Porto de Suape. Tudo isso posiciona o Brasil numa condição muito especial para ajudar na descarbonização de terceiros países. O Brasil está, portanto, numa posição privilegiada de time-to-market e de estruturas de custo atrativas para a produção de insumos e manufaturas verdes.
O POWERSHORING NA RELAÇÃO BRASIL-CHINA
Ao ajudar a acelerar a oferta de manufaturados verdes, o powershoring reduziria custos e prazos da descarbonização na China, ajudaria a aumentar a competitividade das empresas e as apoiaria no enfrentamento de temas de compliance ambiental. Um exemplo é o caso do aço verde, insumo crítico para esverdear muitas cadeias de produção chinesas. Empresas chinesas intensivas em energia e/ou que fornecem para os mercados dos Estados Unidos e Europa seriam beneficiárias imediatas do powershoring, que também poderia ajudar a garantir a resiliência das cadeias de suprimentos expostas ao aumento da intensidade e frequência dos eventos climáticos extremos, protegendo assim as cadeias de produção chinesas.
A China também poderia considerar a produção de baterias e outros produtos intensivos em energia e minerais críticos da transição, investir em fertilizantes verdes para a produção de soja, carnes e outras matérias-primas de que necessita e considerar a adoção de tecnologias avançadas de uso do hidrogênio verde no transporte e logística do que é enviado para a Ásia.
Há outros canais por meio dos quais o powershoring poderia ajudar a descarbonização e estreitar as relações econômicas. Talvez o mais relevante a curto prazo sejam investimentos chineses em energias renováveis e em H2V no Brasil. A estratégia também encoraja a disseminação de tecnologias mais limpas e inovadoras, facilita o acesso a tecnologias de energias renováveis e promove a eficiência energética por meio da troca de conhecimentos e produtos inovadores. O potencial do Brasil associado ao mercado de créditos de carbono e de serviços ambientais também poderia estimular a descarbonização e a preservação ambiental. A estratégia do powershoring poderia funcionar como plataforma de colaborações e parcerias nos âmbitos político, empresarial e acadêmico.
OLHANDO ADIANTE
O Brasil já é um dos principais parceiros comerciais da China e já sedia investimentos chineses da ordem de US$ 70 bilhões em áreas variadas. A agenda do powershoring poderia ampliar relações econômicas que já são frutíferas, mas que poderiam avançar muito mais, com muitos benefícios ambientais e sociais. As relações econômicas entre os dois países experimentam um bom momento, o que ajudaria a criar ambiente adequado para o desenvolvimento de uma agenda ambiciosa como essa.
A colaboração e a cooperação na área do powershoring requer avanços em várias áreas, incluindo a tarifária e a não tarifária, logística, padrões técnicos e regulatórios, acordos de bitributação, temas de crédito e financiamento, moeda, desenvolvimento científico e tecnológico, capacitação e outros temas fundamentais para a expansão e sofisticação das relações comerciais e de investimentos.
A colaboração sino-brasileira no âmbito do powershoring poderia ajudar a inaugurar uma nova agenda da China com a América Latina e o Caribe, que é a região com a matriz elétrica mais verde do planeta e que oferece imensas oportunidades para acelerar a descarbonização da China e do mundo.
Os benefícios potenciais do powershoring para as relações Brasil-China parecem ser suficientemente grandes para estimular a consideração dessa agenda no mais alto nível.
- Jorge Arbache é Vice-Presidente do Setor Privado do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) e Professor de Economia da Universidade de Brasília. Arbache foi Secretário de Assuntos Internacionais e Economista-Chefe do Ministério do Planejamento. Dentre os cargos anteriores, foi Secretário Executivo do Fundo de Investimento Brasil-China, Assessor Econômico Sênior do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, Economista Sênior do Banco Mundial, Economista da Organização Internacional do Trabalho, membro de Conselho de Administração de Empresas e Bancos e membro de Comitês Consultivos de instituições nacionais e internacionais das áreas de negócios, de representação e de conhecimento. Arbache é colunista do Jornal Valor Econômico e publica regularmente trabalhos acadêmicos sobre economia do desenvolvimento e assuntos relacionados.
1. Artigo especialmente preparado a pedido do CEBC. As opiniões aqui expressas são pessoais e não necessariamente representam as visões das instituições às quais o autor está vinculado.
2. Para reduzir a dependência de bens produzidos na China, governos ocidentais têm promovido estratégias como o reshoring, friendshoring e o nearshoring que, grosso modo, visam trazer de volta para casa ou para perto de casa plantas industriais estacionadas no país asiático.
Fonte: Carta Brasil-China/CEBC | Foto: Reprodução/Linkedin
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